quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Eimuntas Nekrosius: minha viagem à Lituânia






Conheci Eimuntas Nekrosius em Lisboa em 2004 num Seminário para Novos Encenadores no Teatro D. Maria II. Não fui à Lituânia mas foi como se tivesse ido, exilei-me para desenvolver a minha tese de formatura sobre "O Cântico dos Cânticos" peça que assisti na estreia no Teatro de Madrid. A viagem à terra de nuestros hermanos foi a única ilha no meio do oceano Lituano onde mergulhei.

Eimuntas Nekrosius nasceu em 21 de Novembro de 1952 em Raseiniu raj, em Vilnius. É casado com a cenógrafa Nadezna Gultiajeva e tem dois filhos.
Em 1977 encena o seu primeiro espectáculo The taste of Honey de Shelag Delaney e, no ano seguinte, completa os seus estudos em Direcção para Teatro e Televisão no Lunacharski Institute of Theatre Art, em Moscovo.
Em 1978-1979 trabalha no Kaunas Drama Theatre e mais tarde no Teatro da Juventude. Em 1980 dirige a sua primeira obra de culto, Love and Death in Verona, uma ópera-rock baseada em “Romeu e Julieta”.
Em 1981 alcança a projecção internacional com Pirosmani, Pirosmani, um espectáculo que recupera a vida do pintor Georgiano Pirosmanisvili. Em 1983 ganha o Prémio Literature and Art of Lithuanian SSR, e em 1996 o Título de Honorary Worker or Art of the Lithuanian SSR. Em 1986 encena o Uncle Vania de Tchekov.
Torna-se em 1991 encenador residente do Festival Internacional de Teatro da Lituânia (LIFE) e, em 1994 regressa a Pushkin com o tríptico Mozart Salieri, Don Juan e A Peste, que lhe garante o Prémio Toarmina para as Novas Realidades Teatrais Europeias. Seguem-se Three Sisters[1] (1995) onde conquista o prestigiado prémio UBU para a melhor produção estrangeira no Festival de Parma. Em 1997, com a encenação de Hamlet, recebe a Mascara de Ouro na crítica russa para a melhor produção estrangeira da temporada – e o prémio da União dos Teatros Lituanos para melhor encenador.
Funda em 1997 a companhia Meno Fortas com a qual estreia dois anos depois, Macbeth e ganha mais um prémio UBU. Continua o que vem a chamar de triologia shakesperiana com Othelo, segunda obra de Shakespeare encenada com a companhia Meno Fortas, em 2001, e Mackbeth, em 2002, no Teatro Comunale. A par de Othelo, encena também Ivanov de Anton Chekov, em 2001. Em 2003 inicia Metai – As Estações, com o ciclo “Primavera/ Outono” , que constitui metade deste épico de Donelaitis. Ainda em 2002, é convidado pela International Stanislavski Foundation para encenar O Cerejal de Anton Chekov .
A par da sua actividade como encenador, Nekrosius tem vindo a dirigir seminários para actores e encenadores. Em 2000 dirigiu A Gaivota na 9ª edição da École des Maîtres[2] – o Curso Internacional de Especialização Teatral, com actores portugueses, franceses e italianos. Em 2003, dirigiu os seus dois últimos seminários, nos quais utilizou o poema Cântico dos Cânticos como base textual. O primeiro realizou-se em França, em Novembro, e foi produzido pelo Centre Dramatique National de Basse-Normandie Comédie de Caen; o segundo realizou-se em Portugal, produzido pelo Teatro Nacional D.Maria II, em Dezembro. Ambos serviram para motivar Nekrosius a encenar o texto de Salomão, que estreou a 21 de Outubro de 2004 no Teatro de Madrid.[3]


Enquadramento geral da obra de Nekrosius no contexto histórico:
Para compreender o teatro contemporâneo e os seus fazedores, é importante seguir com atenção todos os passos que se têm dado desde Konstantin Stanislavski (1863-1938), um dos nomes que marcou a “contemporaneidade” com a instituição de uma fórmula pedagógica na formação do actor, até encenadores mais recentes como Peter Brook, Eugenio Barba, Peter Stein, Peter Zadek, Patrice Chéreau, Klaus-Michael Grüber, Ingmar Bergman, Luca Ronconi, Bob Wilson, Georgio Barberio Corsetti, Stéphanne Braunhweig, Richard Jones.
Nekrosius faz parte do grupo de Lev Dodine e Kristian Lupa[4] e Anatolij Vassiliev, menos conhecidos a nível mundial, que trabalham dentro de um regime de permanente experimentação, mas numa escala marcante, quase sempre pela desmesura. Dodine é conhecido pelas adaptações de grandes romances, Lupa e Nekrosius são famosos por dramatizarem Dostoievski e Shakespeare, respectivamente; Anatolij Vassiliev por ser um dos principais representantes da corrente de Konstantin Stanislavski. Segundo Anatolij Vassiliev[5], um dos encenadores da geração de Nekrosius (discípulo de Jefremov, Ljubimov e Efros, grandes génios do Teatro Soviético da década de 60), a tradição do “teatro psicológico” atravessa uma crise: «Nel Teatro psicologico c’e una crisi autentica, una crisi di questo secolo, il secolo si conclude e al ricambio viene una nuova epoca culturale. Però Stanislavsi appartene a quelle figure che hanno aperto delle leggi base per me, funzioneranno sempre, sulla vase di queste leggi si deve fare qualcosa e si deve andare oltre. Per cui io mi rapporto seriamente a questa figura, ma spesso gli altri adottano un rapporto di non rispetto. Negli ultimi anni non ho più trovato un autentico interesse alla conoscenza, perché anche il teatro russo vive una crisi seria»[6]. Segundo aquele autor, está a acontecer uma crise no “teatro psicológico”, Stanislavski, o percursor deste estilo foi, todavia, uma referência para as gerações posteriores. Vassiliev faz parte destas gerações posteriores que tiraram proveito do método de Stanislavski mas que sentiram a necessidade de o ultrapassar, eis a nova época cultural.
Valentina Valentini refere que Nekrosius faz parte de uma terceira geração do teatro moderno russo-soviético e caracteriza o seu trabalho dentro da corrente teatral do Leste da Europa: «In una somaria genealogia, Nekrosius appartiene, rispetto ai fondatori del teatro moderno russo-soviético, a una terza generatione che há avuto come maestri i diretti allievi ed eredi dei padri fondatori, in una continuità di insegnamento che há prodoto una pratica teatrale che riesce, nonostante tutti i tentativi di imbalsamazione in “metodi e sistemi”, ad avere con la tradizione un rapporto dinamico, in divenire piuttosco che o di rifiuto o di conservazione».[7] Nekrosius ainda é descendente da grande família russa que estabeleceu os princípios didácticos dos desempenhos do actor e do encenador.
«Nekrosius considerado “um génio” por Heiner Müller, é comparado pela crítica actual, a Tadeusz Kantor pela força das imagens que alcança, utilizando os recursos mais reduzidos. Está habituado a ser chamado o «Bob Wilson de leste» na forma como concebe uma performance ao combinar música e adereços.» [8] De Tadeusz Kantor, Nekrosius herda o método sumptuoso dos dispositivos cénicos e a originalidade conceptual, pois tal como Nekrosius, Kantor inventa uma nova forma de linguagem expressiva, o “teatro da arte visual”. A originalidade da sua cenografia marcou o século XX, “como século de guerra e utopia” filtrada através da percepção poética dos temas da morte, da memória, da complexidade da consciência humana individual, conceitos muito próximos do teatro nekrosiano.
Nekrosius ao centro, eu do lado esquerdo com saia branca.




O Contexto Lituano
Dentro da “amostra” que pretendo estudar que é o teatro de Eimuntas Nekrosius, proponho uma breve reflexão sobre o teatro que se faz no Leste da Europa, e, mais especificamente, a realidade na Lituânia. Eis o testemunho do actor Andrius Mamontovas[9]: «Na Lituânia decidimos que o nosso país é um país de parentesco, e é certo, porque nos conhecemos todos. Viver num lugar pequeno tem os seus problemas, não se recebem muitas ideias novas. Quando fazíamos parte da União Soviética era pior, porque era muito difícil sair de cá. Vivíamos muito isolados do resto do mundo. Gostava que os Lituanos aprendessem o que fazer com a liberdade. Há dez anos que somos independentes e há muita gente ainda a comportar-se como se o não soubessem disto. Era bom que pudessem viajar, conhecer outra forma de vida e voltar».[10] O actor aponta a questão da separação da União Soviética, como um factor marcante na mentalidade lituana.
A actual cultura teatral do leste europeu é formada a partir do que culturalmente resta da separação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Há uma ruptura na “grandeza global”, o que traduz numa fragmentação em partes a nível cultural, além disso evidenciou o contraste com o restante modelo teatral ocidental. A companhia – Meno Fortas – é uma metáfora que significa que o método da companhia se impõe pela «resistência», a «fortezza dell’arte» (a forteza[11] da arte) tal como o traduz tão sabiamente Valentina Valentini. Um nome que apresenta a visão do mundo e do teatro através da premissa nekrosiana: «La fortezza è qualcosa de conservativo, niente decadente, art-noveau, niente modernismi; cose arcaiche, punti di vista bem selezionati sull’arte».[12] Esta companhia que prima pela “resistência” tem apresentado os seus espectáculos com desconcertantes versões de autores célebres, em mais de trinta países.
Na cidade de Vilnius, capital da Lituânia, cidade natal da companhia Meno Fortas, estão albergadas sete salas de teatro, das quais uma é dedicada ao teatro clássico e outra dedicada ao teatro para a juventude. A par da companhia Meno Fortas, existem Klaipeda State Drama Theater e a Kaunas State Academic Drama Theather. No Teatro Nacional[13] reside o encenador Oskaras Korsunovas[14], o mais aclamado da cidade pelo estilo popular de Vaudeville[15].
Na Lituânia, o teatro de Nekrosius é visto como “não actual” quando confrontado com outras formas teatrais, nas quais impera a «banalidade americana de mau gosto»[16]. A respeito disto acrescenta Andrius Mamontovas: «Diria que há no meu país um teatro moderno. Alguns artistas com menos nome que Nekrosius mostram obras novas e poéticas. Nekrosius transforma os clássicos em metáforas».[17] Há, todavia, uma grande diversidade de tendências teatrais na Lituânia, outros criativos apresentam diferentes obras poéticas ao estilo que podemos chamar e “estilo nekrosiano”. Uma das características que marca a diferença, da parte de Nekrosius, é o uso de meios técnicos simples em detrimento de «novos produtos da tecnologia»[18], tal como refere Ausra Simanavicute, a produtora do Meno Fortas. A propósito do assunto, afirma Nekrosius: «Os meios de expressão minimalistas podem ajudar-nos a descobrir mais coisas do que os meios modernos e contemporâneos»[19].

(No tempo da faculdade com novas personalidades do teatro português: Joana Figueira, Miguel Vale, Leonor Afonso, Sara Costa, Sara Gonçalves, Sara Carvalhida, Julieta Rodrigues e Pedro Ribeiro. Saudades dos meus amigos queridos: A Joana está no Campo Alegre, o Miguel em Inglaterra, a Julieta pelo mundo e a Leonor perdida de amores.)

O Método Nekrosiano
Nekrosius é, actualmente, um dos mais importantes encenadores a nível Europeu, que se distingue de outros criativos da cena contemporânea por não acompanhar os seus espectáculos com explicitações e fundamentações de teoria teatral. O que já não acontece com Anatolij Vassiliev ou Lev Dodine, representantes, do regime do pós-stanislavskiano.
Apesar de não ter o hábito de produzir teorias sobre teatro teatro, Nekrosius assume que não trabalha de um modo espontâneo, precisa sempre de se estruturar a partir de um longo trabalho de casa. A propósito disto afirma: «Praticamente não tenho tempo livre passo a maior parte do tempo a pensar depois dos ensaios. Não sou daqueles encenadores que sabem criar “in loco”, – preciso de saber de antemão o que vou fazer. Se não sei o que quero fazer, não pode haver ensaio. O que é uma pena: se calhar os momentos mais preciosos acontecem quando menos se espera.»[20]
Para Nekrosius, a característica fundamental na comunicação teatral é a imagem plástica do espectáculo, o lado visual supera o lado textual do teatro e explica: «Estamos habituados a uma ideia literária do teatro, a que ele seja uma coisa que se escuta e não se mostra. Mas a natureza do teatro é ser visto»[21].
O encenador lituano sintetiza o texto dramático até encontrar o “tutano” da obra, porque acredita que é desta forma que traduz em palco o âmago do texto literário. «O teatro é síntese, mas não brevidade. Não consigo contar nada em menos de quatro horas. Quanto mais intermitente é a atenção, mais os espectáculos devem ser longos. O teatro é um antídoto contra a pressa dos tempos.»[22], refere Nekrosius.
Uma característica comum em todos os seus espectáculos é que as palavras quase sufocam para serem expressas, surgem em cena em forma de grito. O grito de Münch é o exemplo que apresenta como metáfora sobre economia de palavras, quando ao assunto explica: «O que está a ser dito está a nascer. As pausas podem ser mais importantes que as palavras. As palavras são muito difíceis de pronunciar. Há um pudor interior, não é preciso chegar depressa ao texto, as palavras devem ser ditas quando necessário, devem ser poupadas.»[23]
Para ele, a síntese do texto vem simplificar toda a noção da acção. A partir do gesto surgem melhores ideias do que do texto por si só e há a necessidade de uma forma simples para articular as ideias, sobre o assunto Nekrosius diz: «Todas as boas ideias nascem da simplicidade»[24]. É actualmente conhecido e reconhecido pela sua poética em palco, pela desmontagem e a condensação que opera nos textos e pela construção de um espaço mental. Podemos identificar a origem do seu «estilo» na estética dos «materiais pobres» implementada por Tadeuz Kantor, no «teatro pobre» e ritualista de Antonin Artaud ou de Jerzy Grotovski. Mas rapidamente percebemos que no trabalho de Nekrosius existe uma estética única que não segue qualquer outra corrente mas contem, por si só, um aglomerado de ideias e ligações imprevistas no momento histórico e cultural actual. Ele próprio refuta qualquer referência directa à tradição ocidental ou oriental, no entanto, reconhece que procura o lado primitivo do teatro[25].
O processo psicológico
Um aspecto importante no seu trabalho é salientado por Valentina Valentini na obra Eimuntas Nekrosius[26] com a questão: «Qual è il segreto per cui il teatro di Nekrosius sembra non contagiato dalle malattie che invece hanno preso possesso del corpo euro-americano, i cui sintomi si manifestano nell’extrateatralità, nella perdita di specificità del genere drammatico?»[27] Analisemos, então, as características que o distanciam e o aproximam do método Stanislavskiano, que o inserem na história do teatro e que definem o “segredo” pelo qual não sofreu influências do chamado “processo do corpo” euro-americano, como refere Valentiva Valentini.
As suas encenações conservam a «quarta parede» e outros elementos igualmente importantes na tradição stanislavskiana. Da tradição Stanislavskiana, Nekrosius conserva, a nível de desempenho de actor, a problemática da vida interior do homem, dos sentimentos mais profundos do ser humano. O encenador refere: «La cosa che mi più cara, quello che sta per me al primo posto nel teatro, è la rivelazione dell’animo umano; credo che la gente vada a teatro perché ci`avviene è proprio in quel momento, è vivo. Allora cerco di ritornare non a qualcosa di efficace, ma alla profondità dei sentimenti umani».[28] No entanto, Nekrosius não assume o rótulo de “teatro psicológico” ou “teatro naturalista” no seu trabalho, por demonstrar no seu trabalho algumas características formais que não estão agregadas a este método. De entre essas características, um dos exemplos mais marcados, é a natureza dos signos apresentados em palco que se aproximam mais da estética do “teatro do absurdo” Becketiana e de um “expressionismo” no teatro, do que do “realismo” Stanislavskiano.
Como afirma Inês Nadais: «A lógica é a mesma: um teatro visual, expressionista e excessivo como o primeiro cinema mudo, em equilíbrio precário entre a solenidade de um grande texto, uma comovente paixão pelas personagens».[29] Nekrosius adora jogar ao desconcertante jogo do Onde está a metáfora? com os espectadores e, por isso, é imperioso observar a função dos objectos em cena (Em Macbeth[30] utilizou o código cifradíssimo das mochilas de onde sai uma árvore). Um teatro expressionista que não fala de causas psicológicas mas de momentos fugazes e pequenos pormenores da vida.
Sobre a estética teatral de Nekrosius afirma Jorge A. Remez, um importante crítico teatral na ex-URSS: «La prima cosa che appare notavole nel fenomeno Nekrosius, è la fusione in lega tra un’exposizione veridica, sinanche naturalistica e una concezione poética».[31]
Nekrosius é adepto do conteúdo em detrimento da forma, para si uma palavra tem possibilidades indeterminadas. O ambiente criado em cena pode ser, para este encenador lituano, o que se imagina que aconteceu além do que nos dá o escritor do texto, e para isso apela à fantasia quando dirige actores: «É preciso encontrar o pormenor e acentua-lo. Apanhar o tom, a nota certa. Ao recolher os pormenores curiosos, trabalha-se de uma forma simples. O realismo trabalhado com naturalidade e não confundido com naturalismo. O realismo acontece no momento, por exemplo, em que a personagem pisa excremento de cão. O teatro une realismo e criatividade».[32]
A expressão da Ruralidade, uma visão antropológica[33]
Uma das características que considero importantes no seu trabalho é o que chamo de influência do meio sobre o indivíduo, e que Eugenio Barba[34] (1936 - ) traduz como Antropologia Teatral[35]. Para este encenador, a hipótese da «antropologia da representação» acontece quando o indivíduo concilia a necessidade de representação com a necessidade da prática teatral como experiência de vida e como acto político. O método de Barba difere do método de Nekrosius em diversos aspectos e assemelha-se noutros, como por exemplo, no resultado final, o espectáculo. Por me parecer um motivo importante para estabelecer uma relação entre eles, apresento algumas das principais características destas duas estéticas:
· O ensaio e o treino de actor: Barba desenvolve um plano documental sobre o método da representação teatral do actor através de diversas fundamentações teóricas com base em técnicas do teatro oriental e aplica-o na prática através da “direcção de actores” no treino físico. Este treino funciona como tarefa independente do ensaio. Sobre o assunto, Eugenio Barba explica: «Estávamos à procura daquela que é a lógica emotivo-sensorial na emissão dos sons e das frases; uma lógica que nos ajudasse a potencializar a situação dramática, visto que, no nível semântico, do significado das palavras, tínhamos uma grande dificuldade porque os nossos actores, procedentes de diversos países, falavam línguas diferentes. Durante oito anos aproximadamente, pesquisámos, neste campo, tanto no nosso treino vocal como nos nossos espectáculos».[36]Através deste treino, o actor alcança a destreza e “energia” física necessária à criação cénica. Nekrosius, por sua vez, não exige qualquer treino, mas todavia o empenho físico dos seus actores é muito semelhante ao empenho dos actores de Barba. Nekrosius consegue gerir a “energia” cénica dos seus actores através da simples experimentação durante o ensaio. Vejamos o testemunho de Andrius Mamontovas[37]: «Dà delle linee generali su cui improvisare. Perlui il texto non è importante Ama l’azione. Il dramma è un dramma d’azione. Nekrosius chiede agli attori di eseguire delle azioni, osserva e dice se va bene e comincia a parlare della scena e del dramma, mentre gli attori seduti intorno lo ascoltano. Prima ne parla a grandi linee e poi si sofferma su agli dettaglio, dopodiché si reprende a provare e a improvisare (...)Il training non è qualcosa che siamo soliti fare ogni giorno».[38] O actor aponta uma característica comum a Nekrosius e Barba, a importância das acções físicas. No treino barbiano, existe uma escala base de “acções físicas” a desenvolver no “treino tradicional” no Odin Teatret. Ao assistir ao espectáculo de Hamlet de Nekrosius em 1997, em Elsidore (Dinamarca), Eugenio Barba diz: «Eis a marca de um artista de teatro que entende claramente a dramaturgia das acções e a dramaturgia das palavras. Hamlet é o espectáculo que marca o nome de Nekrosius na Europa». A partir destas palavras, concluo que Eugenio Barba encontra em Nekrosius uma das características do seu trabalho, o que chama de «dramaturgia das acções e dramaturgia das palavras».
· O imaginário cénico e a tradição Polaca: Ambos os encenadores, representantes da tradição polaca, apresentam nos seus espectáculos uma vertente visual muito forte que é pontuada por um contexto de “teatro ritual". Este conceito “ritual” é outra das características que aproxima o trabalho de Nekrosius ao trabalho de Eugenio Barba, nomeadamente no que concerne à “proximidade aos elementos da natureza”. Nekrosius recorre frequentemente, nos seus espectáculos, à metáfora dos diferentes elementos naturais (o fogo, a água, a terra e o ar), o que se explica pela sua ligação à terra, pois este encenador refere frequentemente que cresceu nos campos de batalha da Lituânia. Sobre o assunto explica: «Para mim, tocar, escutar, ver os elementos naturais dos quais faço parte é uma verdade da vida. E depois sou um caçador. Gosto de silêncio e da atenção da caça».[39] Esta “ligação à terra” está directamente ligada, no caso de Barba à tradição oriental, enquanto que Nekrosius não se identifica com esta “cultura pagã” de forma directa ou conscientemente, isto nos refere Nekrosius: «Todas estas coisas vêm ter a mim. Eu não penso na cultura pagã de uma forma consciente mas perco muito tempo em contacto com a vida rural da Lituânia, por sua vez, em contacto constante com o fogo, a água e a terra, pelo que é natural para mim colocar estas coisas no espectáculo. Este tipo de ambiente é mais próximo de mim do que aquilo que já foi cultivado e refinado. Gosto de texturas cruas.»[40] Os elementos naturais e o “conceito ritual” que estes significam em palco, tem estado presente em todos os espectáculos encenados por Nekrosius, que estiveram em Portugal: As Três Irmãs, Macbeth, Othelo e Metai. Também publiquei uma matéria sobre Nekrosius.


A pobreza e o minimalismo[41]
Nekrosius é mestre, como mais ninguém no teatro contemporâneo, em conseguir efeitos de empatia (da parte do público) através de uma espécie de “universalização” da “causa social” presente em cena. Vemos pessoas em palco a serem agredidas com cordas verdadeiras, a serem pisadas, arrastadas pelas pernas e fustigadas pelas próprias roupas de pano rude e agressivo. Esta agressão telúrica não está relacionada, quer com um local concreto ou com uma época. É eterna. O ambiente neutro enfatiza e rasga o sentido épico da existência representada em palco, mediante um teatro metafórico desenhado em ricas associações, mas que usa meios simples e lacónicos.
Muitos chamam-lhe o encenador “estilo europeu” que melhor usa o simbolismo ao lado dos “americanos literários”, porque no teatro de Nekrosius tudo é ostentado até ao limite. O que não significa que estejamos perante um “texto barroco”[42]: a narrativa é simbólica, no entanto minimalista, os ícones obrigatórios que estruturam as suas encenações são escassos mas inesquecíveis. É essa dialéctica entre a contenção e a euforia, resolvida sempre da melhor maneira, que faz de Nekrosius um Mestre: alguém que prova em cada espectáculo que basta meia dúzia de ingredientes “pobres” para fazer grande teatro. Eis também um dos lemas da tradição polaca de Grotowski, a noção de “teatro pobre”[43], defendendo a ciência, a fonologia, a psicologia e a antropologia em contraste com o não à cinematização do teatro.
E, se entendermos a antropologia teatral como um dos fundamentos do homem na análise do meio histórico, político e social em que está inserido, eis porque Nekrosius encena Metai, o épico Lituano. Metai[44] (As Estações) de Donelaitis surge como pretexto para uma reflexão sobre a sobrevivência de uma Lituânia micro, “entalada” entre a gigantesca Rússia e uma União Europeia em expansão. Este espectáculo denuncia um pouco da arqueologia dessa voz lituana (que segundo Nekrosius «tem dificuldade em ouvir-se»[45]) a querer fazer ouvir-se através do poema épico que descreve a vida dos camponeses do século XVIII na Prússia Oriental, um país colonizado e parasitado por alemães, austríacos, suíços e franceses. Nekrosius aborda um trabalho clássico, poeticisando o labor físico que se vem a transformar numa visão espiritual de redescoberta criativa daquele local geográfico que deu origem à Lituânia, o país mais verde do Báltico. Desta forma, o trabalho torna-se arte e, ao mesmo tempo, o próprio destino do indivíduo. Na interpretação do encenador contemporâneo lituano, esta via é sempre contraditória, flamejada de catástrofes quer no sentido figurativo quer no espaço físico do palco. Em cena estão dispostas lascas de vidro afiadas, através das quais oito personagens se passeiam seis personagens da história – quatro jovens mulheres e homens – olham para nós, não são uma mera imagem do gelo primaveril. Eis que surge a tentação perigosa do “polimento de vidro”, o Outono, que simboliza o próprio pastor e poeta, um pedaço de vidro pendurado num fio que atrai pela sua transparência e suavidade, que funciona como um transmissor de luz e ao mesmo tempo um objecto que pode magoar. A procura de luz é materializada por um absurdo, apesar de um absolutamente orgânico, acto da adolescência. O adolescente atraído por ele, corre e salta em direcção ao vidro até que se magoa na sua cabeça. Da cabeça jorra o sangue, é a metáfora sangrenta, a vitima chora e o público sente a sua dor.
O que nos diz e comunica um espectáculo de Nekrosius? Creio que os seus espectáculos em palco dizem-nos mais do que alguma vez poderíamos supor lendo o texto escrito. Ao longo das brincadeiras “infantis” que se vão desenrolando em cena («o que primeiro é loucura, depois é norma»[46]), vai-se mostrando um universo de uma intensidade emocional quase insustentável que, no final, nos deixava com a sensação de, pela primeira vez, termos percebido alguma coisa sobre a obra. Apresentando o exemplo de Shakespeare, o autor mais revisitado por este encenador: nem todo o teatro de Shakespeare lá está, mas estão outras coisas que a leitura da peça e que o trabalho de interpretação e de improvisação criou a partir daquele texto que nos convence de que é aquele o sentimento verdadeiro que a obra transmite. A peça tal como foi escrita pelo respectivo autor, aparece como uma possibilidade de infinitas construções de sentido, como uma proposta de universos que se vão desvendando, desmultiplicando, que nascem uns dos outros, o resultado é um universo complexo. Sabemos que o sentido da linguagem não é apenas um, e muito menos o da linguagem artística; o que o espectáculo de Nekrosius nos propõe é uma vivência da obra de arte que nos mostra a sua infinita produtividade, a sua capacidade de construir mundos que dependem de experiências de vida e de leitura que não só proliferam em cada um de nós, como variam de leitor, de espectador para espectador, de actor para actor. Cada receptor vai receber um estímulo diferente e processá-lo de acordo com o seu entendimento, o objecto teatral não é estanque, pretende suscitar diferentes interpelações, dependendo de quem faz e de quem recebe. Valentina Valentini resume a encenação de Nekrosius pelo seguinte: «È uno teatro carnale, vitale, gioioso, com clownerie, scene comiche, suspense, checoniuga descrizione e narratione, tragico e comico, coralità e assoli, analitico e sintetico, la fluidità narrativa del cinema e la concretezza del teatro, che há oltrepassato la rappresentazione figurativa senza diventare astratto, in cui il registro sonoro, piuttosto che il texto verbale, gioca il ruolo de dispositivo dominante, in quanto agisce sai funcione espressiva che narrativa.»[47] Enfim, o teatro de Nekrosius consegue aglomerar muitas facetas, é constituído por uma inúmera paleta de cores.
NOTAS:
[1] Ver imagem em Anexo 2.
[2] Dirigida por Franco Quadri e promovida em Itália pelo Center of Services and Stage Productions of Udine e do Italian Theatre Institution.
[3] Co-produção com XXI Festival Otoño e o Festival de Teatro Baltico de S.Petersburgo e Aldo Miguel Grompone, Roma.
[4] Um dos orientadores no Seminário para Jovens Encenadores, ao lado de Eimuntas Nekrosius, Béatrice Picon-Vallin, Gennadi Bogdanov, Ana Monção, António Emiliano, José Manuel Mendes e Luís Lima Barreto, produzido pelo Teatro D.Maria II, em Lisboa, de Julho a Dezembro de 2003.)
[5] Cfr. Anatolij Vassiliev, Theatre as Monastic Community, Theaterschrift, n.1, Beyond Indifferance, Março 1992, pp.46-86. «(...)I foud myself in a period when theses geniuses of the Soviet theatre either died or stopped working. And before my very eyes the theatre world entered a state of crisis This happened at the beginning of the 1980s and the entire aestetic philosophy of 1960s went throu a difficult crisis».
[6] CAPITTA, Gianfranco e URSIC, Ursini – Sentire il teatro. Entrevista a Anatolij Vassiliev, «Teatro in Europa» Vol.I, n.14-15, Itália: Ubulibri, 1995, pp. 64-68
Tradução gentilmente elaborada pelo Professor Pedro Barbosa, a partir do original de Valentina Valentini: «No teatro psicológico há uma autêntica crise, uma crise própria deste século, o século termina e em sua substituição vem uma nova época cultural. No entanto, Stanislavski pertence a essas figuras que, quanto a mim, abriram regras de base, que funcionarão sempre, e com base nestas regras há que fazer muita coisa mas é preciso também ultrapassá-las. Por isso eu me relaciono seriamente com esta figura, embora muitas vezes outros adoptem uma relação desrespeitosa. Nos últimos anos nunca encontrei um interesse autêntico pelo conhecimento – será porque o teatro russo ainda vive uma crise profunda?»
[7] VALENTINI, Valentina – Eimuntas Nekrosius. Itália: Rubbettino Editore, 1999. p.92.
Trad. do Professor Pedro Barbosa: «Numa sumária genealogia, Nekrosius pertence, no que respeita aos fundadores do teatro moderno russo-soviético, a uma terceira geração que teve como mestres os discípulos directos, herdeiros dos pais fundadores, numa continuidade de ensino que produziu uma prática teatral que consegue, não obstante de todas as tentativas de embalsamamento em métodos e sistemas, ter com a tradição uma relação dinâmica, mais em devir permanente do que numa atitude de recusa ou de refutação»
[8] Comentário de Carlos Pacheco presente no site http://www.lanacion.com.ar/Archivo/Nota.asp?nota_id=647057
[9] Actor lituano que interpreta a personagem “Hamlet”, no espectáculo Hamlet, encenado por Nekrosius, em 1997. (Ver imagem em Anexo 2.)
[10] Citação de Andrius Mamontovas, no site http://www.geocities.com/Broadway/Orchestra/6272/jenkins_e.htm
[11] «Forteza ou fortidão, s. f. Qualidade do que é forte; força; rijeza; consistência; solidez (...)», in COSTA, J. Almeida e Melo, A. Sampaio, Dicionário de Português, Porto: Porto Editora, 1990.
[12] “Performance Research. A Journal of Performing Art ”, On refuge, vol. 2, n.3, Routlege,1997.
Trad. minha: «A “forteza” é qualquer coisa de conservador, de modo nenhum decadente, , mas nada de modernismos, art-noveau , é algo arcaico (antigo), pontos de vista bem seleccionados a respeito da arte
[13] Espaço grandioso, construído mediante o estilo soviético (como há poucos na República Soviética) no inicio dos anos setenta segundo o principio dos “teatros para massas”.
[14] Em conversa com uma colega da ESMAE de nacionalidade Lituana, sobre o teatro no seu país, a colega referia-me Korsunovas como o mais popular da cena nacional.
[15] O género teatral Vaudeville, com origens do século XVIII, nasceu em França dali se difundindo por outros países, especialmente para os Estados Unidos.
[16] VALENTINI, Valentina. Op. Cit.p.87.
[17] Citação de Andrius Mamontovas, no site http://www.geocities.com/Broadway/Orchestra/6272/jenkins_e.htm
[18] Em conversa com Ausra Simanavicute, após a apresentação espectáculo Cântico dos Cânticos da companhia, a que assisti a 22 de Outubro, em Madrid.
[19] Citação de Inês Nadais no site: http://lazer.publico.pt/porto2001/noticias/noticia0246.html
[20] Citação de Nekrosius no site: http://lazer.publico.pt/porto2001/noticias/noticia0246.html
[21] IDEM
[22] Citação de Nekrosius durante o Seminário para Jovens Encenadores, Teatro D.Maria II, Lisboa, 2004.
[23] IDEM
[24] IDEM
[25] IDEM
[26] VALENTINI, Valentina. Op Cit.
[27] IDEM – Ibidem, p.72
Trad. do Prof. Pedro Barbosa: «Qual é o segredo pelo qual o teatro de Nekrosius parece não contagiado pelas maleitas que se apossaram do corpo euro-americano, cujos sintomas se manifestam pela extrateatralidade, pela perda da especificidade do género dramático?»
[28] VALENTINI, Valentina. Op. Cit.p. 81
Trad. minha: «O mais importante para mim, é aquilo que está em primeiro lugar no teatro, é a revelação da alma humana; acredito que as pessoas vão ao teatro porque se identificam a elas próprias naquele momento, que é vivo. Agora não procuro retornar a qualquer coisa de eficaz mas à profundidade dos sentimentos humanos».
[29] Citação de Inês Nadais no site http://lazer.publico.pt/porto2001/noticias/noticia0246.html
[30] Espectáculo produzido pela Meno Fortas, encenado por Nekrosius, estreou em Vilnius em 1999.
[31] Citação de O. Remez, no site: http://www.muspe.unibo.it/period/pdd/num05/02_num5.htm
[32] Citação de Eimuntas Nekrosius no Seminário para Jovens Encenadores, Teatro D.Maria II, Dezembro, 2003.
[33] Noção Barbiana que vem fazer a ponte entre os dois encenadores: Barba e Nekrosius.
[34] Eugenio Barba é natural de Gallipoli, em Itália. Estuda teatro em Varsóvia, na Polónia, e junta-se a Jerzy Grotowski em Opole, onde começa a desenvolver os primeiros fundamentos da teoria antropológica. Viaja pelo Oriente e em 1964 funda a companhia Odin Teatret em Oslo, que vem a estabelecer-se em Holstebro, na Dinamarca.
[35] BARBA, Eugenio – Além das Ilhas flutuantes, Brasil: Editora Hucitec-Unicamp, 1991.
[36] IDEM, Ibidem. p.79.
[37] Actor que interpreta a personagem Hamlet, no espectáculo Hamlet encenado por Nekrosius em 1997
[38] Citação de Andrius Mamontovas, no site http://guide.supereva.it/il_teatro/interventi/2004/04/154533.shtml
Trad. do Prof. Pedro Barbosa: « Dá linhas gerais para improvisar. Para ele o texto não é importante, ama a acção, o drama é um drama de acção. Nekrosius pede aos actores para executar acções, observa e diz se vai bem, depois começa a falar da cena, enquanto os actores, sentados à sua volta, o ouvem. Primeiro fala das grandes linhas, depois detém-se no pormenor. Depois recomeça-se a representar e a improvisar. O training não é algo que estejamos habituados a fazer todos os dias».
[39] Comentário de Nekrosius no site http://usuarios.lycos.ar/larepublica/laicis45jk.htm
[40] Citação de Nekrosius no site: http://www.geocities.com/Broadway/Orchestra/6272/jenkins_e.htm
[41] Este termo, nas artes plásticas e em especial na pintura e na escultura, aparece entre 1960 e 1970, e tal como o próprio nome indica, a arte minimalista é despojada até à sua essência; é puramente abstracta, objectiva e anónima, sem decoração superficial ou gesto expressivo. A palavra define na sua essência o contexto cenográfico utilizado por Nekrosius.
[42] A designação de “Barroco” na literatura, aparece, historicamente, na transição do século XVI para o século XVII, vem insurgir-se contra o humanismo renascentista, afirma, ao contrário, o misticismo, o ascetismo, o dramatismo do homem, dividido entre as solicitações da natureza e da carne e a aspiração espiritual.
[43] Grotowski, Jersy – Para um Teatro Pobre, Lisboa: Forja, 1987.
[44] Ver imagem em Anexo 2.
[45] Comentário de Nekrosius no Seminário para Jovens Encenadores, Teatro D.Maria II, Dezembro, 2003.
[46] IDEM
[47] VALENTINI, Valentina. Op. Cit.p.94.
Trad. do Prof. Pedro Barbosa: «É um teatro carnal, vital, alegre, clownesco, cenas cómicas, suspense, que conjuga descrição e narração, trágico e cómico, coral e individual, analítico e sintético, com a fluidez narrativa do cinema e a concretude do teatro, que ultrapassou a representação figurativa sem se tornar abstracto, onde o registo sonoro, mais do que o texto verbal, desempenha o papel de dispositivo dominante, enquanto age quer com função expressiva quer narrativa».

Eugenio Barba, a minha viagem à Dinamarca em 2001

NA DINAMARCA
Como qualquer pesquisador que pretende entender as raízes da questão, resolvi que teria de me encontrar com os mestres para entender a sua "mestria", daí que só compreendi Eugenio Barba quando estive num dos seus estágios intensivos e inesquecíveis.

Compreendi que o contacto é a melhor forma de aprendizagem, quando podemos "respirar o assunto".
Um pouco sobre Eugenio Barba:

Desde cedo, Eugenio Barba, aprendeu a observar com acuidade, observou o andar, o movimento das mão, maneiras de olhar..., esta faculdade da observação surgiu, tal como diz, por ele ser basicamente um estrangeiro, na vida e na arte. Na vida, pois como Italiano de origem, veio ainda cedo, aos 17 anos, a emigrar para a Noruega, e a sua dificuldade com a língua e os costumes, levaram-no a desenvolver a habilidade de entender sem o recurso das palavras, o que as pessoas que o circundavam sentiam: repulsa, amor, amizade, compaixão... Ele é um estrangeiro na arte, porque como veremos, preservou este distanciamento que a vida o conduziu, no seu ofício, o teatro. Avalia-o com os olhos, o que o distancia do olhar tradicional.
Deste modo, ao longo da análise a que me proponho, tentarei demonstrar, que este viés empírico, o infortúnio da saída de sua terra natal, Itália, aliada à procura existencial - o «quem sou Eu?» - define o seu trabalho e as suas ideias.

Eugenio Barba é sem dúvida um «teatrólogo», graças ao seu desempenho na companhia Odin Teatret - Nordisk Teaterlaboratorium que fundou em 1964 na cidade de Holstebro, na Dinamarca veio a ter reconhecimento internacional. Não é propriamente um teórico, mas um prático que reflecte sobre sua acção, mais especificamente a sua profissão, o teatro. Ao longo da sua vida, foi definindo conceitos, demonstrando sempre, que são conceitos práticos, podendo assim, sofrer mudanças, estes não se ordenam num todo coeso, num sistema. Contudo existe um rigor, o qual tentarei nas passagens posteriores colocar, criando a imagem do primeiro plano, a linguagem própria ao teatro, e do plano de fundo, a redefinição da identidade profissional.

Ao longo de sua vida, Eugenio Barba, luta para as criar as suas "ilhas", "aldeias", onde espera preservar uma ideia de fazer teatro, no qual a identidade do actor e do seu grupo estão em primeiro plano, em oposição ao teatro tradicional, produto pasteurizado, consumido em massa, supondo um público também pasteurizado, o que aliás a Europa como centro do capitalismo é um óptimo exemplo, onde o actor é funcionário de uma companhia teatral, nos moldes de um operário assalariado, e onde sofre do mesmo processo de alienação ( perda do conhecimento global de seu ofício, inversão de posição de sujeito para objecto dentro do contexto cénico, entre outros.)
E. Barba, vem consequentemente, na mesma direcção dos grandes actores e directores do século XX, que reagiram a este processo que culminou com a inserção completa dos actores e da arte, na maioria, num sistema onde perdem a identificação ou raiz, processo este semelhante ao qual passou o operariado no mundo industrial. Identifica-se com outros grupos de "vanguarda e revolução" pelo mundo fora, tentando preservar a própria tradição do seu ofício. Por isto mesmo, vanguarda ou revolução não é derrubar ou destruir ou combater simplesmente, mas também recuperar um tipo de representação que foi deslocado para um campo marginal e que bem pode ser o teatro clássico, no sentido mais restrito possível ( pré-indústria cultural ). Eugenio Barba diz-nos "... vanguarda podem ser também, aqueles grupos que ao longo da história do teatro, reagiram contra a tradição, indo inspirar-se nos clássicos, no teatro grego, ou romano."
A chamada vanguarda para E. Barba está relacionada a um tipo de teatro revolucionário, que como ele nos diz, por analogia, como o nosso mundo quotidiano está para o mundo atómico. Do nosso mundo tão conhecido, tão acessível, para um mundo que exige um novo aparelho conceptual, uma nova forma de pensar. O Teatro de Eugenio Barba tem a tendência de se distanciar do teatro tradicional, como distante estão ..." as ideias de Newton em relação as de Bohr " no tempo e no espaço.
O tema Antropologia Teatral, visa enfeixar os diferentes conceitos e princípios, que permitem, segundo E. Barba, dotar o actor, enquanto objecto principal das suas preocupações, da capacidade de controlar os seus instrumentos, de "vestir ou despir-se" das suas personagens conscientemente e de um modo belo e atraente. Ou seja dotá-lo de técnica e conceitos que o aparelhem a fazer frente a uma realidade que de um lado o aliena (enquanto operário no teatro), gerando no seu trabalho uma mudança de valor, de um actor que reproduz uma arte que E. Barba contesta, para um actor dotado de "Identidade". Superando assim os limites de uma perspectiva que se pretendesse apenas resumir algumas técnicas cénicas.

A relação de E. Barba com Grotowski:

Após ter assimilado com o seu amigo Jerzy Grotowski os conceitos e técnicas básicas de um teatro crítico, de laboratório, que ele denomina de vanguarda, E. Barba deixa Varsóvia em direcção à Ásia. Ali, viaja seguidamente pela China, Índia, Tailândia, Bali... onde viria a refinar as ideias acima expostas, das diferentes categorias de encenar, bem como se depara com novos recursos cénicos, que como exporei mais adiante, o levarão a repensar o próprio conceito de Teatro. Na Ásia encontra uma arte tipicamente clássica, nos moldes do "Pólo Norte" quanto a elementos actuando no mais perfeito sentido de "Pólo Sul".
E. Barba, percebe no movimento em cena de um artista do Teatro Nô, Japonês, um subtil movimento das mãos, e acompanhando os dedos, observa o equilíbrio e a suavidade dos movimentos, impossíveis de serem obtidos sem muitos anos de exaustivos treinos que um actor do "Pólo Sul", jamais atingiria este nível.
Nos seus diálogos descobre um intenso treino de equilíbrio de postura, da posição da coluna em relação ao tronco, do leve arquear dos joelhos, reforçando este desequilíbrio, e remetendo o peso do corpo para a base do pé. Observou que algo parecido ocorria com seus actores também. Lembrou-se das aulas de Teatro que assistira em Copenhaga, e das aulas sobre o caminhar, a procura de um novo equilíbrio, que deveria ser o utilizado pelo actor, diferentemente do andar comum. Com o passar dos anos, chamou este momento que antecede a interpretação de «pré-expressividade». Anterior à expressão, que permite que a expressão ocorra sem cortes, límpida e cristalina, este momento é comum a todas as escolas e tradições cénicas. O equilíbrio corporal será assim o seu primeiro princípio. Contudo é preciso dispor as várias técnicas num vector teórico, a saber a diferença entre o saber quotidiano e o extra quotidiano (teatral).

QUANDO EU ERA REPORTER...


Resolvi publicar algumas entrevistas que realizei há uns anos idos, quando eu era reporter do Jornal Universitário.

AL BERTO, poeta português


«Afinal uma obra de arte é um todo ambíguo dado a diferentes interpretações conforme as sensibilidades e experiências de vida de quem a usufrui. Não é um estímulo pavloviano.» (Jorge PaIinhos; Introd. de Lunário, Poema polifónico – Adaptação dramática de Lunário de Al Berto.)

AL BERTO
Alberto Raposo Pidwell Tavares nasce em Coimbra a 11 de Janeiro de 1948. No ano seguinte muda-se com os seus pais para Sines, vila a que dedica sete textos na obra "Mar-de-Leva".
Devido ao seu extraordinário dom natural para a pintura, a família decide enviá-lo para a Escola António Arroio, em Lisboa.
Frequenta o Curso de Formação Artística do SNBA.
Frequenta a École Nationale Supérieure d’Architecture et des Arts Visuels (La Cambre)/ Peinture Monumentale (1967).
Frequentou diversos cursos de artes plásticas, em Portugal e em Bruxelas, onde se exilou em 1967. A partir de 1971 dedicou-se exclusivamente à literatura. Estreou-se com o título “À Procura do Vento no Jardim de Agosto” (1977). A sua poesia retomou, de algum modo, a herança surrealista, fundindo o real e o imaginário.
É influenciado por Malcom Lowry, William Burroughs, Genet, Rimbaud, Baudelaire, Dylan Thomas, e outros.
A obra poética de Al Berto é inseparável de uma representação heróica do poeta, ou, segundo Jorge palinhos, do seu “alter-ego” representado pela personagem Beno em Lunário.
Morre em Lisboa a 13 de Junho de 1997.

Telão pintado de vida e obra
Uma obra que se lapidou como representação de uma vida, de um autor, no sentido do poeta trágico moderno, ao estilo de Rimbaud; ou uma obra que se cruza com a vida.
Al Berto definiu poeticamente o horizonte em que se quis ver desenhado, ou seja, situou-se ele próprio, oniricamente, na realidade das suas obras. Há, na sua obra, a dificuldade de definir os limites da realidade e da ficção. Criou Al Berto os cenários pitorescos caravaggianos onde encenou a sua vida numa exuberância excessiva; exuberância essa que remete para a morte e para o sexo, e onde se cruzam imagens de mar, deserto, fogo, noite, eternidade, silêncio, corpo, aveias, sémen, paixões…
Além de ter estudado Belas-Artes, Al Berto escreveu sobre artes plásticas ("A Vida Secreta das Imagens"), usou soberanamente a fotografia como um detonador de fantasmas: os seus e os de quem se cruzava consigo nas noites boémias. A sua poesia é carregada de uma encenação dramática capaz de oscilar entre os sentidos mais eruditos e a pacatez da prosa. A prosa, por sua vez, transfigurada poeticamente, é elevada a uma espécie de condição mítica.

A época underground
O Lunário remete-nos para um mundo de sombras, de verdades, de fragmentos. A Lua, cuja importância tutelar se revela logo no título, funciona como uma metáfora especular: “Deixara o tempo erguer em seu redor um espaço sem passado nem presente, nem futuro. Estava ali esquecido de si mesmo, era tudo.” (Lunário, pag.17, Assírio e Alvim).
Os fantasmas musicais do Rock dos anos 70 percorrem a obra de Al Berto:
Lou Reed, Joy Division ou Nick Cave; Velvet Underground & Nico, Kinks, Iggy Pop, David Bowie, Lou Reed.
Estas menções musicais são os marcos que indiciam, na sua obra, uma localização temporal algures nos anos 70 (universo underground). Simultaneamente estas referências musicais funcionam como se de um coro das tragédias gregas se tratasse, sublinhando os estados de espírito das estranhas personagens deste autor.


Jorge Palinhos, de 26 anos, nasceu em Leiria e é coordenador editorial das Edições Asa. Frequentou o Curso de Português-Inglês na Faculdade de Letras do Porto.
Durante os tempos de faculdade esteve envolvido em alguns jornais, como o Letras e Imagens ou o Jornal Académico do Porto da FAP; o JUP e as edições de A PONTE. Nesta última publicação, escreveu “artigos estranhos” e de “opinião irreverente”, segundo o autor. O primeiro artigo chamou-se «O que é o Bitoque?»: “Segundo me explicaram, Bitoque é em Lisboa porque aqui chama-se prego.” - acrescenta, depois de lhe colocar-mos a mesma pergunta.
A peça “Auto da Razão”, que escrevera para o concurso Novas Dramaturgias do INATEL, valeu-lhe o Prémio Miguel Revisco.
Dos artigos que tem escrito, “o trabalho e a preguiça” é um dos que lhe vem à memória, tal como um outro que escreveu recentemente: “Tudo o que nunca quiseste saber sobre Pogonomia”, que vem editado nas páginas 48 e 49 do último número da revista literária 368.

Al Berto e o Lunário:
«A obra do Al Berto é constituída por uma sistema muito coerente, fala apenas de uma quantidade restrita de assuntos. Posso enquadrá-la dentro de um contexto neo-romântico, influenciado pela onda do neo-romântismo musical de finais dos anos 70, nomeadamente com os Velvet Undergroud. Al Berto escreveu muito poesia ou prosa poética, todavia o Lunário foi a prosa menos poética que escreveu, apesar de conter mesmo assim momentos extremamente poéticos.
A obra de Al Berto anda à volta da sua vida: a de um expatriado no centro da Europa; a da sua juventude e da sua homossexualidade. Há uma dicotomia entre o muito espiritual e o muito escatológico, que Al Berto consegue por vezes combinar no mesmo verso. Exemplo disso é o verso “as pérolas de cuspe nos pêlos do cú”, o qual define totalmente o seu estilo. A obra é habitada por imagens como as flores, a noite, o sexo, as drogas, a prostituição, os engates, os bares alternativos; imagens frequentemente referenciadas num tom popular. Uma das suas grandes referências é Baudelaire.
A adaptação
«A transferência de uma obra de um suporte para outro é uma arte de delicadeza.» (Introd. da Adaptação Dramática de Jorge Palinhos de Lunário)
«A adaptação foi um processo um pouco complexo. Na passagem de uma obra para outro tipo de representação, há sempre muito que se perde. No universo da adaptação teatral, existe sempre a opção de fazer uma adaptação literal, a de tomar o texto original como inspiração, ou a de escrever algo completamente novo. Considerei, contudo, que deveria ser o mais fiel possível ao original, na medida em que é esta a primeira adaptação desta obra. Seleccionei uma série de temas que a mim me seduziam mais e tentei ser-lhes fiel, procurando e ligando episódios, referências, frases e palavras que mais se interligavam. Ao submeter a obra ao meu imaginário, combinei o estilo do Al Berto com o meu.
A adaptação foi feita, todavia, a pensar num espectáculo; mas foi uma adaptação com liberdade, dando margem de manobra à idealizada encenação. Relativamente à parte plástica, ela aparece, ora como cenário, ora como indicação de cena ( há, por exemplo, a indicação para a personagem Beno desenhar no vidro um coração), ora no diálogo.»
O que mais o fascinou
«A memória foi a característica que mais me fascinou ao adaptar o Lunário – o modo como ela persiste na vida das pessoas. Al Berto saiu do país aos 15 anos, andou pelo centro da Europa em grandes tropelias e aventuras, voltou para Sines e lá constituiu uma espécie de “Comuna Anarco-Cultural”. Mais tarde, passou a viver sozinho numa cabana junto à Costa. Foi a partir dessa altura que desenvolveu a maior parte da sua produção literária. Toda a sua obra se baseia na sua juventude - há muito de invocação de fantasmas, de pessoas, de situações e lugares onde esteve. Para ele as recordações eram extremamente fortes, vivia mais no passado do que no presente. O Lunário tem algumas referências que talvez remetam para o presente, mas de um modo geral dá ideia que é sempre um tempo passado.»
«É possível observar a forma como a memória se torna no ponto fixo da vida de uma pessoa: há uma fase da vida muito importante para Al Berto, esta fase é o clímax. A partir daí, tenta prolongar essa fase, recolhe-se e passa a viver praticamente das memórias. Digamos que essa memória se torna numa coisa quase física para ele. Foi a partir desse ponto de vista que tentei construir a adaptação dramática. A história do Lunário começa no fim da vida de Beno, a personagem principal; depois há uma analepse, um flashback em que ele recorda todos aqueles episódios. Duvida-se se foram ou não episódios verídicos; julgo que à partida aconteceram mesmo e tornaram-se para ele simbólicos.»
«O corpo das pessoas é memória viva: as rugas, as cicatrizes, as transformações... É como se o corpo fosse o livro da vida. A maior parte das recordações que temos estão associadas aos sentidos – As recordações que tenho da infância estão muito ligadas aos sentidos - o cheiro da minha mãe a passar a roupa a ferro; o jardim depois da chuva; os sons à ida para a escola....»
As personagens
«O Beno é uma espécie de alter-ego do Al Berto, o Nému poderá ter sido um grande amor da sua vida, ou uma espécie de arquétipo de todas as relações que teve. Dá-me ideia que as outras personagens também foram reais, no sentido em que a maioria das histórias contadas me parece relativamente credível – gente que enlouquece, que se suicida, que se torna recluso e deixa de ter contacto com as outras pessoas. É possível, de outro modo, que a memória do Al Berto tenha transfigurado essas personalidades para facetas dele próprio. As personagens de Lunário - o Kid , o Nému, o Zohía, a Alva, o Silko - são recorrentes na sua obra poética. As pessoas que conhecemos acabam por deixar marcas em nós. Somos produtos da genética, da educação e da vida. »
O Neo-Romantismo
«No contexto da poesia Portuguesa, Al Berto é um caso um pouco isolado, estando muito ligado à marginalidade. Viveu sempre em Sines, arredado dos meios Literários que se concentravam no Porto e em Lisboa. Al Berto está muito ligado à década de 60, Maio de 68, ou Woodstock; movimento Hippie , mundo das drogas, misticismo e experiências alternativas.»
«Foi influenciado por um surrealismo da altura, já tardio. Ao nível da poesia, foi o surrealismo de Mário Henrique Leiria e Alexandre O`Neil que o influenciou. Em Al Berto acontece uma reminiscência do Maio de 68, ele acaba por estar à margem de tudo o que vem a seguir. É também contagiado pelas referências «mais mundanas» de Eugénio de Andrade ou Herberto Helder.»
As referências dramáticas...
«Na minha época de estudante, as influências eram outras, vinham da década de oitenta: o Movimento de Manchester, o Punk, os New Order. Esta década é quase a antítese absoluta da de sessenta».
«Uma grande referência que tenho ao nível do teatro é William Shakespeare e a obra que mais me fascina é Macbeth. É a única personagem de Shakespeare em que não há um mal absoluto, o mal existe residualmente em todas as pessoas. Outra característica peculiar nesta obra é a fragmentação do tempo - «eu vou e está feito» - o momento não existe, apenas o antes e o depois. É uma peça reaccionária, contra a modificação do poder; exprime a corrupção de personalidade. Em tempos tive a primeira cena decorada!»

«Consegui? Não sei. Mas não me julguem muito severamente. Afinal a maior virtude do luar é iluminar apenas as nossas qualidades, deixando que a noite esconda os nossos defeitos e pecados.» ( Introd. da Adaptação Dramática de Jorge Palinhos de Lunário)
Assim nos brindou o jovem homem de letras, Jorge Palinhos, com a sua simpatia numa conversa de três horas numa segunda-feira de manhã.